sábado, 6 de abril de 2013

Carta ao alfaiate Sturmm


"O casaco serve para tornar o homem apresentável e viável através das ocupações sociais".
“Meu bom Sturmm, a sua sobrecasaca é perfeitamente insensata. Ali a tenho, arejando à janela, às costas de uma cadeira. E assenta tão bem nestas costas de pau como assentaria nas do comandante das Guardas Municipais, nas do Patriarca, nas de um piloto da barra, ou nas de um filósofo, se houvesse nestes reinos”.
“Quero pois severamente dizer-lhe que ela não possui individualidade. Se você, bom Sturmm, fosse apenas um algibebe [vendedor de ternos já prontos], embrulhando a multidão em pano sedan para tapar a nudez, eu não faria à sua obra esta crítica tão alta e exigente. Mas você é alemão, e de Konisgberg cidade metafísica. A sua tesoura tem parentesco com a pena de Emanuel Kant, e legitimamente me surpreende que você não a use com a mesma sagacidade psicológica.
“Não ignora V., decerto, que ao lado da filosofia da história e de outras filosofias, há ainda mais uma, importante e vasta, que se chama a filosofia do vestuário; e menos ignora, decerto, que aí se aprende, entre tanta coisa profunda, esta, de superior profundidade: que o casaco está para o homem como a palavra está para a idéia”.
“Ora, para que serve a palavra, Sturmm? Para tornar a idéia perceptível e transmissível nas relações humanas – como o casaco serve para tornar o homem apresentável e viável através das ocupações sociais”.
“Mas é a palavra empregada sempre em rigorosa concordância de valor com a idéia? Não, meu Sturmm. Quando a idéia é aborrecida e trivial, ateia-se, revestindo-a de palavras gordas e aparatosas – como as que se usam na política. Quando a idéia é grosseira ou bestial, embeleza-se e poetiza-se, recobrindo-se de palavras macias, afagantes, canoras – como todas as que se usam nos romances”.
“Por outro lado, escolhem-se palavras de uma retumbância especial para reforçar a veemência da idéia – como nos rasgos à Mirabeau – ou rebuscam-se as que pela estranheza plástica ajuntam uma sensação física à emoção intelectual – como nos versos de Baudelaire”.
“Temos pois que a palavra opera sobre a idéia, ou disfarçando-a ou acentuando-a. Vai–me você seguindo, perspicaz Sturmm? Tudo isso se aplica exatamente às conexões do casaco com o homem. Para que talham certos alfaiates ingleses sobrecasacas longas, retas e rígidas, com um debrum de austeridade e ressudando virtude por todas as costuras?”
“Para esconder a velhacaria de quem as vestem”.
“Você encontra essas sobrecasacas em Londres, nos meetings religiosos, nas sociedades promotoras da moralização dos pequenos patagônicos e nos romances de Dickens. (…) Disfarçando-o ou acentuando-o, o casaco deve ser a expressão visível do caráter ou do tipo que cada um pretende representar entre os seus concidadãos”.
“Quem lhe encomenda pois um casaco, digno Sturmm, encomenda-lhe na realidade um prospecto”.
“E nem precisa um alfaiate que aprofundou a sua arte de receber a confissão do freguês. As ligeiras recomendações que escapam, inquietas e tímidas, na hora atribulada da «prova», bastam para que ele compreenda o uso social a que o cliente destina a sua farpela… Assim, se um cavalheiro de luvas pretas, com um luneta de ouro entalada entre dois botões do colete, que move os passos com lentidão e reflexão, e, ao entrar, pousou sobre a mesa um número do Jornal do Economista, lhe diz, num tom de mansa reprovação, ao provar o casaco: “Está curto e justo de cinta”, você deve logo deduzir que ele deseja aquelas abas bem fornidas, flutuantes, que demonstram abundância de princípios, circunspecção, amor sólido da ordem e conhecimento miúdo das pautas da Alfândega”.
“Vai você penetrando, meu bom Sturmm? Ora, que lhe murmurei eu, no meu mau alemão, ao provar a sobrecasaca infausta? Esta fugidia indicação: “Que cinja bem!” Isto bastava para você entender que eu desejava, através desta veste, mostrar-me a Lisboa, onde a ia usar, sinceramente como sou – reservado, cingido comigo mesmo, frio, céptico, inacessível aos pedidos de meias libras… E, no entanto, que me manda você, Sturmm, num embrulho de papel pardo? Você manda-me a sobrecasaca que talha bem para toda a gente em Portugal, desgraçadamente: a sobrecasaca do conselheiro! Digo «desgraçadamente» porque vestindo-nos todos pelo mesmo molde, você leva-nos todos a ter o mesmo sentir e a ter o mesmo pensar”.
“Nada influencia mais profundamente o sentir do homem do que a fatiota que o cobre”.
“O mais ríspido profeta, se enverga uma casaca e ata ao pescoço um laço branco, tende logo a sentir o encanto das (damas) e da valsa. E o mais extraviado mundano, dentro de uma robe de chambre, sente apetites de serão doméstico e de carinhos ao fogão. Maior ainda se afirma a influência do vestuário sobre pensar. Não é possível conceber um sistema filosófico com os pés entalados em escarpins de baile, e um jaquetão de veludo preto forrado a cetim azul leva inevitavelmente a idéias conservadoras”.
“Você, pondo no dorso de toda a sociedade essa casaca de conselheiro – lisa, insípida, rotineira, pesabunda -, está simplesmente criando um país de conselheiros! Dentro desta contenção banalizadora e achatante o poeta perde a fantasia…”
“Dentro desta concepção banalisadora e achatante o poeta perde a fantasia, o dandi perde a vivacidade, o militar perde a coragem, o jornalista perde a veia, o crítico perde a sagacidade, o padre perde a fé. Perdendo cada um o relevo e a saliência própria, fica tudo reduzido a esse cepo moral que se chama o conselheiro! A sua tesoura está assim mesquinhamente aparando a originalidade do país!”
“Você corta, em cada casaca, a mortalha de um temperamento”.
“E se Camões ainda vivesse – e você o vestisse – tínhamos em lugar dos Sonetos, artigos do Comércio do Porto”.

(Comentários a um escrito de Eça de Queiroz (Fradique Mendes, Cartas Inéditas, n. XIX, a E. Sturmm, alfaiate)

Nenhum comentário:

Postar um comentário