sexta-feira, 29 de junho de 2012

Assistimos a “evaporação” do conceito do pai em nossos dias?


Luciana Sica, Jornal La Repubblica.

“Papi”: é assim que os adolescentes de hoje chamam seu próprio pai, com um nomezinho que soa como um sinônimo do esvaziamento da autoridade da figura paterna. Para dizer melhor, com Massimo Recalcati: “A figura do pai reduzida a ‘papi’, ao invés de sustentar o valor virtuoso do limite, autoriza a sua mais total dissolução. E reflete a tendência de fundo da família hipermoderna: ambos os genitores estão mais preocupados em se fazer amar pelos seus filhos do que em educá-los. Mais ansiosos em protegê-los dos fracassos do que em suportar os seus conflitos e, portanto, menos capazes de representar ainda a diferença geracional”.

Recalcati é psicanalista, e lacaniano ainda por cima, porém, o seu Uomo senza inconscio [Homem sem inconsciente] vendeu mais de 10 mil cópias. Um sucesso devido à capacidade de contar os transtornos da nossa civilização sem um excesso de tecnicismos escolásticos.

Será publicado o seu novo livro sobre a paternidade na época hipermoderna, sobre a evaporação do pai, segundo a expressão cunhada por Lacan ainda no final dos anos 60. É um tema que incide sobre as mudanças da cultura ocidental, vindo a faltar o princípio fundante da família e do corpo social – além de investir profundamente contra a condição existencial de cada um.

A interrogação do título já alude a um vazio que dificilmente pode ser preenchido: Cosa resta del padre? [O que resta do pai?] (Ed. Cortina, 190 páginas).

Eis a entrevista.

O que resta do homem que assegurava a ordem do mundo e da vida dos seus filhos?

Certamente não o ideal do Pai, o pater familias, o pai como herdeiro na terra do poder transcendente de Deus, e nem o pai edípico celebrado por Freud como suporte da realidade psíquica. Não podemos mais recorrer à autoridade simbólica do pai, que quase se dissolveu: dizem-no os psicanalistas, os sociólogos, os filósofos da política… Trata-se, então, de pensar no pai como “resto”, não mais Ideal normativo, mas sim como ato singular e irrepetível, antagonista ao ensinamento exemplar, à intenção pedagógica. Aquilo que resta do pai tem a dimensão de um testemunho ético, é a encarnação da possibilidade de viver ainda animados por paixões, vocações, projetos criativos, embora sem o recurso à fé na palavra dogmática ou por meio de sermões morais.

O pai é um homem que ainda sabe transmitir o sentimento da esperança?

É um homem que diz “sim!” ao que existe, sem aprofundar no abismo de um puro gozo destrutivo, sem tornar a vida equivalente à vontade de morrer ou de enlouquecer. A verdade que pode transmitir está necessariamente enfraquecida, porque não exibe modelos exemplares ou universais: o seu testemunho, de fato, fere toda exemplaridade e toda universalidade, tornando-se excêntrica e anárquica com relação a qualquer retórica educativa. O que conta – e resta a um filho – é como, na escura noite de um mundo sem Deus, um pai mantém aceso o fogo da vida, não a manifestação de uma negação repressiva pura, mas, ao contrário, a doação da confiança no porvir.

Em uma relação que permanece totalmente assimétrica?

Absolutamente. Vou dar um exemplo muito simples: um insulto de um pai dirigido a um filho pode ter um efeito indelével que o contrário não comporta de modo algum… Quando Freud lhe atribuía o saber “manter os olhos fechados”, pretendia sublinhar o caráter “humanizado” da Lei que ele representa. Não ouvir uma palavra insolente ou não ver um gesto obsceno, às vezes, pode ser a condição para continuar o jogo… É a dupla tarefa da função paterna: introduzir um “não!” que seja verdadeiramente um “não!” e, ao mesmo tempo, saber encarnar um desejo vital e capaz de realização.

Famílias monoparentais, maiores de 50 anos que se tornam mães sem um companheiro, ( A sociedade mudou..). Havia uma vez o esquema edípico – sintetizando: o pai “interdiz” o gozo incestuoso e “separa” a mãe do filho. Mas o mundo não é verdadeiramente “novo”, e certos modelos, quase inservíveis?

O esquema edípico continua tendo o seu valor, se, porém, abandonamos o teatrinho familiar.  O importante é que não seja menosprezada a função educativa do laço familiar, o que quer dizer humanizar a vida, inscrevê-la em uma pertença, fazê-la participar de uma cultura de grupo, dar-lhe uma casa, isto é, uma raiz, uma disponibilidade ao cuidado e à presença… Se não se pode mais transmitir o verdadeiro sentido da vida, é ainda possível, porém, mostrar que se dá um sentido à vida.

Além de Freud e principalmente Lacan, o senhor recorre à literatura com Philip Roth (Patrimônio) e Cormac McCharty (A Estrada). E depois àquele cinema de Clint Eastwood que rompe justamente a “ordem do sangue”. Tomemos como exemplo Menina de Ouro…

Toda paternidade, como Françoise Dolto gostava de repetir, é sempre adotiva, é sempre uma adoção simbólica que transcende o sangue e a biologia… “Eu quero você!”. “Serei o seu treinador!”: Frankie reconhece o desejo de Maggie de se tornar uma pugilista profissional, de ter ele e não outros como treinador, responde à sua demanda abrindo uma exceção à própria ética (”Eu não treino garotas!”) e ao funcionamento da sua academia, frequentada só por homens. Desse modo, o ato da paternidade se produz como ruptura de uma ordem universal: a ordem da moral normativa, do sangue e da genealogia, a ordem dos dogmas. Frankie acolhe Maggie, não a abandona como “uma causa perdida”. No fim, será o seu enfermeiro, a sua luz, o seu pai amado.

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