sábado, 15 de setembro de 2012

A virtude da modéstia: humildade no vestir e no falar



“Feliz comportamento aquele em que os inimigos
 não encontram outra culpa além da observância da lei”.

(“Glossa – Interlin.”)


Sidney Silveira


A humildade é uma virtude moral, e não intelectual ou teologal. Ora, como toda virtude moral — embora radique no interior da alma — traz consigo reflexos exteriores, com a humildade não poderia ser diferente: o seu signo visível é a modéstia, tanto no vestir, como no falar. Assim, no que diz respeito ao vestir, o ornato demasiado elegante, chamativo, indecoroso, ostensivo ou frívolo é sinal da imodéstia que vem sempre acompanhada do orgulho, o qual faz uma pessoa querer atrair para si as atenções; no tocante ao falar, as palavras chulas, detratórias, ociosas, excessivamente pomposas, fora de lugar, jactanciosas ou ofensivas são a mostra evidente da soberba, fonte de todos os pecados, amor excessivo, desmesurado, da própria excelência, o qual leva uma pessoa a invejar e a desprezar as demais.



Desde o pecado original até o fim dos tempos, a modéstia sempre terá inimigos, pois a humildade de que é reflexo os têm em grande quantidade (sendo, como é, o primeiro degrau da sabedoria e o movimento inicial da alma a Deus). Pois bem: uma das formas mais antigas, enfadonhas e torpes de criticar a modéstia — seja no vestir ou no falar — é simplesmente acusá-la de hipocrisia, de verniz superficial, de falsa simplicidade. Ocorre que, como salienta muito bem a Glosa, não se conhecem os falsos profetas pelos vestidos, e sim pelas obras, razão pela qual as ovelhas não estão obrigadas a despir-se de suas peles pelo fato de os lobos [ocasionalmente] as usarem.[1] Assim, a ninguém é lícito envergonhar-se de se vestir ou de falar modestamente, pois isto não é possível sem algum grau de consciência culpável; não é lícito fazer isto por respeitos humanos, ou seja, pela preocupação com o olhar do mundo.


Comentando aquela passagem da Glosa, Santo Tomás de Aquino afirma duas coisas preciosas na primeira parte do opúsculo Contra Impugnantes Dei Cultum et Religionem (obra que dá título a este blog):


Ø Os hipócritas não tentariam ocultar sua malícia sob a modéstia, se esta não tivesse aparência de bem;


Ø O demônio não tentaria ocultar seus ministros sob o hábito religioso, se com isto não buscasse fazê-los parecer bons para obrar mais livremente o mal.


Como se pode deduzir do que está dito acima, até mesmo a hipocrisia é uma espécie de reverência — canhestra, decerto — ao bem, pois os hipócritas, sendo maus, buscam ter aparência de bons. Mas a este respeito indaga São Jerônimo, com clareza e precisão, o seguinte: “Porventura devemos culpar a virgindade do crime cometido por quem finge praticá-la?”[2] Ora, muita razão tinha o grande Jerônimo ao fazer a necessária distinção entre a louvável prática de uma virtude e o vicioso uso de deturpá-la, macaqueando-a de forma caricata ao ponto de fazer o virtuoso parecer vicioso, de se tomar o joio pelo trigo. É, portanto, assaz corriqueiro as almas maliciosas chamarem a humildade de hipocrisia, e a modéstia de falsidade. Não encontrando sinais dessas virtudes em si, não as suportam ver nos outros. Precisam, pois, negá-las em gênero, número e grau.


Na verdade, a coisa é bastante evidente no tocante ao vestir, dado que a vestimenta indecorosa ou ostentadora exacerba o apetite concupiscível e desvia a inteligência das coisas verdadeiramente importantes a considerar nas pessoas, mas nem tanto no que tange ao falar, pois neste caso a verdade é mais sutil e sujeita a enganos. Seja como for, ao abordar o problema das palavras que se devem usar no ensino da verdade — tanto a filosófica, como a de fé —, assim como se cabe aos religiosos vestir roupas humildes, o Aquinate pulveriza no citado Contra Impugnantes os argumentos dos malvados que, julgando mal das coisas e das pessoas (male iudicando de rebus et male iudicando de personis), diziam o seguinte:


a) é sinal de imodéstia usar de beleza oratória, dos ornatos da eloqüência humana para falar das coisas divinas;


b) é mais repreensível querer exceder-se em modéstia e pobreza no vestir do que em elegância e garbo.


À primeira dessas impugnações, partindo da premissa de que a perversidade de juízo sobre as coisas é perniciosa (vero perversitas iuidicii de rebus perniciosior est), responde o Doutor Comum citando a São Jerônimo (Epístola 70, endereçada a Magno, orador de Roma) e a Santo Agostinho (tratado De Doctrina Christiana). De Jerônimo lembra que, desde os Apóstolos, passando pelos escritores canônicos e por seus expositores, os cristãos souberam unir a sabedoria divina à oratória humana, souberam com santa moderação imiscuir a retórica secular na sagrada doutrina (...sacrae doctrinae immiscuisse sapientiam et eloquentiam saecularem). Daí que, segundo o Aquinate, seja digno de elogio, e não de detração, quem com modéstia põe a eloqüência humana a serviço das verdades da fé. De Agostinho menciona ele a passagem em que se diz: “Requer-se a eloqüência quando se aconselha algo que deve ser feito, de maneira que se ensine para instruir e se deleite para atrair”[3].


Obviamente não se trata, nestes dois exemplos acima, de linguagem demasiado elegante — como fim em si mesma, ao modo dos sofistas —, mas da elegância diácona da verdade. Não se trata de imodéstia, mas do humilde ato de revestir a verdade com a beleza [4], para torná-la palatável aos homens.


À segunda dessas impugnações o Angélico responde dizendo, entre várias outras coisas, o seguinte: o que é merecedor da misericórdia divina não pode ser mau (illud quod divinam misericordiam promeretur non potest esse malum). E recorre à autoridade da Sagrada Escritura para lembrar que até mesmo grandes pecadores alcançaram a misericórdia de Deus por humilhar-se com vestes pobres, modestas. Frisa o Aquinate: “Assim, por exemplo, em 1 Reis, XXI, 27, se diz do perverso Acab que, ao ouvir as palavras de Elias, ‘rasgou suas vestes, cobriu-se com um saco e jejuou’. Por isso disse dele o Senhor a Elias: ‘Viste como Acab humilhou-se diante de Mim? Pois, por ter procedido assim, não lhe enviarei o castigo durante os dias de sua vida’”[5]. Os demais argumentos desse trecho do opúsculo abordaremos noutra ocasião.


A propósito do bem falar que revela ciência (ou seja, do discurso não vanglorioso), Santo Tomás cita novamente o Bispo de Hipona, que no mesmo De Doctrina Christiana afirma: “Perante os pagãos, o Apóstolo não vacilou um segundo sequer em proclamar a sua ciência, sem a qual não poderia ser chamado de Doutor dos Gentios”. Ora — advirtamos nós —, ao contrário dos que põem no ornato verbal o fim do discurso, o Apóstolo punha-o na conversão e no ensino da verdade. Daí Santo Agostinho, no mesmo trecho da citada obra, apontar o seguinte: “O Apóstolo, quando fala de si como tosco de palavras mas não de conhecimento (2 Cor XI, 6), está fazendo uma concessão a seus detratores, e não falando como quem assumisse um ato mau e o confessasse”. Isto porque a sabedoria está acima da eloqüência, razão pela qual esta deve ser usada em função daquela, e não o contrário — o que, ademais, seria enorme estultice.


Assim, o fato de que a hipocrisia disfarçada de modéstia no vestir seja pecado grave não implica que a modéstia no vestir seja vil como a elegância excessiva (pretiositas).[6] E o mesmo podemos dizer, com total segurança, da hipocrisia oculta por trás da modéstia no falar. Como porém os entes são especificados pela forma que possuem, e não pela corrupção dela, a modéstia não pode ser medida por uma hipocrisia pressuposta, e sim pela humildade de que é reflexo — até porque não nos cabe julgar ou adivinhar o coração dos homens, pois só Deus vê o oculto. E se agregue a isto um fator relevante: a simplicidade do homem modesto é visível a olho nu, razão pela qual o primeiro critério para julgar a modéstia são os seus sinais exteriores: falar e vestir-se com simplicidade e decoro. Até porque o falso modesto, o verdadeiro hipócrita, por mais que encha de encômios esta virtude sempre deixará escapar aos olhares atentos a sua verdadeira situação espiritual, análoga à do fariseu que, ao rezar no templo, se achara melhor que o publicano (Lc. XVIII, 10-14). Vejamos o que diz o Aquinate:


“A modéstia no vestir (vilitas vestium) não se ordena por si à hipocrisia, pois esta é certo abuso daquela. (...) E dado que o abuso é tanto mais digno de vitupério quanto mais a coisa [de que se abusa] é santa, sendo a hipocrisia tão grande pecado compreende-se que a modéstia no vestir seja coisa manifestamente recomendável, como o são também as obras exteriores de penitência das quais também abusa a hipocrisia”.[7]


Do que foi dito acima se segue, necessariamente, um corolário: ao imodesto está formalmente vedada a sabedoria, pois, agindo tão contrariamente à humildade, a sua ciência servirá apenas para inflar-lhe o ego de forma grotesca. E, como afirma o Aquinate neste tesouro espiritual que é o Contra Impugnantes, “a ciência infla quando não está acompanhada da caridade”; ou, na concisão da Glosa: “A ciência sozinha infla”[8]. Ora, é justamente a essa ciência sem a mais ínfima sombra de espírito caritativo que se refere São Gregório Magno — tão lido por Tomás de Aquino! — ao afirmar o seguinte em sua Moral:


“O perverso censura nos bons as obras retas que se nega a praticar”.[9]


Assim, ainda quando chamados de "hipócritas" por gente manifestamente maliciosa, aos cristãos é aconselhado não se envergonhar jamais de sua humildade — a qual é uma participação na humildade de Cristo, o modelo perfeito a imitar. A sã doutrina nos ensina a reconhecê-la como uma dádiva de Deus, pois Nosso Senhor mesmo nos exortou a isto:


“Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração” (Mt. XI, 29). [10]

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1. Glossa Margin.

2. São Jerônimo, Adversus Helvid. nº 21.

3. De Doc. Christ. , XIII, nº. 29

4. Ora, sendo o verdadeiro (verum) e o belo (pulchrum) dois transcendentais do ser, é conveniente estarem unidos no discurso humano, pois tudo o que é verdadeiro é, de alguma forma, belo.

5. Tomás de Aquino, Contra Impugnantes, q.8, nº 3.

6. (...) ex hoc quod hypocrisis quae latet sub vilitate vestium est magnum peccatum, non potest haberi quod vilitas vestium sit deterior quam pretiositas. Tomás de Aquino, Contra Impugnantes, q. 8, ad 7.

7. Tomás de Aquino, Contra Impugnantes, q.8, ad. 6.

8.“Scientia inflat si sola est”. Glossa Petri Lombardi, a.1 Cor. VIII, 1.

9. São Gregório, Moral, VI, c. 22, nº 39.

10. Obviamente não se trata de gabar-se da humildade, o que (além de ridículo) implicaria perdê-la no ato. Não se trata de fazer como um famoso personagem de Dickens que vivia batendo no próprio peito e gritando aos quatro ventos: “Sou o sujeito mais humilde do mundo”. Não, o cristão reconhece-se humilde, sim, mas em Cristo, o que significa dizer que a sua humildade é toda ela advinda de instância superior. Negá-la seria negar um dom de Deus. A atitude correta, então, é exercitá-la enxergando a própria pequenez e a assombrosa misericórdia divina que, malgrado os nossos pecados, quer nos levar ao céu.

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