sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

“Uma definição de cavalheiro,” John H. Newman

Tradução de trecho do Discurso VIII em
“The Idea of a University” (1852)

Na prática, define-se um cavalheiro dizendo que ele é alguém que jamais inflige a dor. Esta descrição é refinada e, na medida do possível, precisa. Ele ocupa-se principalmente com a simples remoção dos obstáculos que impedem a ação livre e desembaraçada daqueles à sua volta, e contribui com seus passos, ao invés de apenas por si tomar a iniciativa. Seus benefícios podem ser considerados como paralelos ao que chamamos confortos ou conveniências nas disposições pessoais: como uma poltrona ou um bom fogo, que fazem sua parte para dissipar o frio e o cansaço, embora mesmo sem eles a natureza forneça os meios de descanso e calor animal. Da mesma forma, o verdadeiro cavalheiro cuidadosamente evita tudo que possa causar um sobressalto ou choque nas mentes daqueles com os quais se mistura; — todo conflito de opinião ou colisão de sentimentos, toda repressão, ou suspeita, ou melancolia, ou ressentimento; sua grande preocupação sendo fazer todos sentirem-se à vontade e em casa. Ele observa a todos em sua companhia; é tenro com o tímido, gentil com o distante e misericordioso com o absurdo; ele é capaz de lembrar-se com quem está falando; ele protege-se contra as alusões inoportunas ou temas que possam ser irritantes; ele raramente arvora-se na conversa, e jamais é cansativo. Ele faz pouco dos favores enquanto os realiza, e parece ser quem os recebe quando os concede. Ele jamais fala de si mesmo, exceto quando exigido, jamais se defende por uma simples réplica, não dá ouvidos a calúnia ou fofoca, é escrupuloso ao imputar motivos aos que se intrometem, e a tudo interpreta com a melhor das intenções.
Em suas controvérsias, jamais é mesquinho ou insignificante, jamais leva uma vantagem injusta, jamais confunde personalidades ou a língua afiada com argumentos, ou insinua uma maldade que não ousaria dizer em alto e bom som. Partindo de uma previdente prudência, ele observa a máxima do sábio antigo, de que devemos sempre nos dirigir ao nosso inimigo como se ele um dia se tornasse nosso amigo. Ele possui bom senso demais para ser afrontado por insultos, é muito ocupado para se lembrar de ofensas, e indolente demais para comportar malícia. É paciente, tolerante e resignado a respeito de princípios filosóficos; submete-se à dor, porque é inevitável, à perda, porque é irreparável, e à morte, porque é seu destino. Se entra em qualquer tipo de controvérsia, seu disciplinado intelecto o preserva da desajeitada descortesia de mentes possivelmente melhores, mas menos educadas: pessoas que, como armas embotadas, rasgam e retalham ao invés de fazer um corte limpo, que confundem o ponto da argumentação, desperdiçam sua energia em ninharias, interpretam mal o adversário e deixam a questão ainda mais convoluta do que quando a encararam. A opinião do cavalheiro pode estar certa ou errada, mas ele é lúcido demais para o injusto; é tão simples quanto convincente, e tão breve quanto decisivo. Em nenhum outro lugar encontraremos maior franqueza, consideração e indulgência: ele joga-se para dentro da cabeça de seus oponentes e explica seus enganos. Ele conhece a fragilidade da razão humana, bem como sua força, seu domínio e seus limites. Se ele for um descrente, será profundo demais e generoso demais para ridicularizar a religião ou ir contra ela; ele é sábio demais para ser um dogmático ou fanático em sua infidelidade. Ele respeita a piedade e a devoção; até mesmo apóia como veneráveis, belas ou úteis as instituições das quais discorda; ele honra os ministros religiosos e julga agradável rejeitar seus mistérios sem ter de atacá-los ou denunciá-los. Ele é um amigo da tolerância religiosa, e isto não porque sua filosofia o tenha ensinado a ver todas as formas de fé com um olhar imparcial, mas também pela gentileza e feminilização do sentimento, que serve à civilização.

Não que ele também não possa ter uma religião, ao seu próprio modo, mesmo quando não é um cristão. Nesse caso, sua religião é uma religião da imaginação e do sentimento; é a encarnação daquelas idéias do sublime, do majestoso e do belo, sem as quais não pode haver uma grande filosofia. Às vezes reconhece a existência de Deus, às vezes aplica um princípio desconhecido ou uma qualidade desconhecida com os atributos da perfeição. E essa dedução de sua razão ou criação de sua imaginação ele transforma na ocasião de excelentes pensamentos e o ponto de partida de um ensinamento tão variado e sistemático, que ele até parece um discípulo da próprio cristianismo. A partir da precisão e estabilidade mesmas de seus poderes lógicos, ele é capaz de ver quais sentimentos são consistentes naqueles que defendem alguma doutrina religiosa, e parece aos olhos dos outros sentir e defender um círculo inteiro de verdades teológicas, que existem em sua mente simplesmente como uma série de deduções.

Fonte: Revista Terminal

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